- PEDRO
LUSO DE CARVALHO
JANE TUTIKIAN é porto-alegrense, nascida em
1952. É Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, professora na mesma universidade, autora de mais de uma dezena de livros
dirigidos ao leitor adulto e ao infanto-juvenil. Foi patrona da 57ª edição da
Feira do Livro de Porto Alegre de 2011.
A escritora estreou em 1981 com os contos de Batalha Naval. Em 1984 Jane Tutikian
ganhou o premio Jabuti pelo livro juvenil
A cor do azul. Seus livros mais recentes são, dentre outros, o livro de
contos adultos Entre mulheres: contos do amor aprendiz (2005), e os
infanto-juvenis Olhos azuis, Coração vermelho (2005); Fica ficando (2007) e Por que não agora?, que foi lançado na
Feira do Livro de 2010.
Segue o conto Por perdas e danos, de Jane Tutikian (In Rodízio
de Contos. Organizado por Arnaldo Campos, Charles Kiefer e Laury Maciel. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1985, p. 66-68):
[ESPAÇO DO CONTO]
Meu
ser vive na Noite e no Desejo.
Minha
alma é uma lembrança que há em mim.
Fernando
Pessoa
POR PERDAS E DANOS
(Jane Tutikian)
É que, de
repente, no meio da casa, no meio da noite, no meio da vida, me assola uma
saudade enorme, dessas em que a gente nem sabe que rumo tomar e se deixa ir por
um frio qualquer, de uma fresta qualquer,
coração e vísceras expostos, desabrigada. Tantos foram os porquês?, que percebo
ter perdido o meu agora. E agora?
Luto para que
o silêncio não me possua, mas o movimento único é o de me saber viva.
Não quero que
me peças, nunca para te compreender, nem que me olhes
assim:................................................................................................................................................................................................................................................................................................–,
pedido que te ouça e aceite,
simplesmente. É que, simplesmente, eu teria de definir o indefinível, caminhar
o estático, sorrir com a tua boca grande de dentes pequenos e olhos rasgados,
sorrir a minha própria perda.
Ora, eu sei
que o amor é uma teimosia invencível do coração. É desnudar para a vida e
levantar todas as cortinas e abrir todas as portas e respirar todas as luzes no
gozo pleno do exercício estando e. Mas, é, também, eu sei, sair ferido pela
palavra mais inocente e mutilado do gesto mais brusco. E agora?
Agora, o que
será isso, afinal, o que será esse É QUE
a que me submeto violentada e passiva e
que te dá a mim uma forma tão mais próxima e completa justamente quando mais me
perco para o nunca mais? Talvez te pareça engraçado, mas às vezes penso que é
meu destino o de carregar pela vida a fora o nunca mais das pessoas que amei.
Eu sei, a minha nudez só a mim pertence, a tua nudez só a ti pertence, é a
natureza de ser, não é? Chorei quando não consegui aguentar, comi como uma
louca para conseguir te suportar, fumei até meu orgasmo estourar em crises e
crises de asma só porque na minha cabeça bate uma coração de mulher.
Odeio esta
lucidez que tanto admiro em ti. Odeio o que ela te destruiu, oque ela te fez
maior quando te sentias menor e te transformava, no gesto estúpido, num animal
fragilizado e débil.
Ao diabo os
outros! A injustiça! A crise! O anticoncepcional! A fome! Ao diabo os corpos
que não se querem donos, as almas que só se querem chão – ao diabo, queria ter
dito – se amo tua sensibilidade, se me banho em catarse no som da tua voz, que
permanece intacta nos meus ouvidos em dias escuros, de escuridões quase
intransponíveis, e em noites claras do mais puro prazer de sentir... Ao diabo o
diabo porque te odiei com todo o carinho de que fui capaz e te amei raivando,
filha irrecuperável.
Ora, amadureci,
eu sei, me cresci um tanto em tantas das tuas palavras porque, despreparada e
surpresa, me chamaram a pensar e a pensar e a pensar e. Só que as pessoas
maduras envolvem até o suportável e eu quero também o insuportável porque a
perfeição tem de ser o inteiro... Só que, alucinada de tanto realismo, abri
minha porta para quando tu quisesses, se quisesses chegar.
Tu viste.
Viste, sim. Mas vistes com deboches, numa conversa que me soava tão estranha de
“eu sou mais eu”, “percebe minha senhora?”, “finja que sou malandro”, uma
alegria de cena: eu sei: quando eu estiver bem no alto, no perigo, recolhe a
rede: ela é a grande mentira... Mas também viestes com manhas e lamúrias. Com
choros fáceis e difíceis que só a ti diziam respeito. Mas, sobretudo, viestes
com verdades, assim, na cara, sem
eufemismos, olho no olho, letra na letra, doando-se, o irrefutável. E quem te pediu verdades?
De verdades,
estou farta. Sofro-as diariamente nos jornais, nas pessoas, nos bichos, nas
plantas, nos pedaços de carne que me coube. Ai! Que sarcástica a alegria da
consciência! Que dolorida a emoção da consciência!
Tudo o que eu
queria agora, no meio da vida, era a presença, aquela que a Nana canta, tu
lembras? “é o fim da procura, infinita loucura de sempre acreditar que estas em
mim”, a Doce Presença desafiante e fiel num corpo rico de seus próprios ritmos:
tua força vital, e tu ficas aí, agora:
inerte
sem fazer
absolutamente nada
as mão
cruzadas sobre o peito
repetindo
interminavelmente a mesma cena a mesma cena a mesma cena a mesma cena a que,
interminavelmente, eu vou ter de assistir a mesma c
Não perdoo
teu tempo!
Inútil
colocar um tempo dentro de outro! Cada um pertence a si próprio. Não percebeste
que não se pode jogar, para o passado, o presente e, para o futuro, o passado,
achando que ele vai resolver e mostrar quê?
Não
percebeste que ele não resolve nada? Cada um pertence a si próprio. Não
percebeste que não se pode jogar, para o passado, o presente e, para o futuro,
o passado, achando que ele vai resolver e mostrar quê?
Não
percebeste que ele não resolve nada? Que lembrar é tornar sonho o que foi
verdade e o que hoje é QUE É e que o tempo é a vida que a gente cria do modo
que pode e que teu tempo és tu e que o meu tempo sou eu e que o depois também
será, mas jamais será, o passado?
Se
descobrimos, o que nos coloca entre os poucos, o sentir, se descobrimos a vida
de sensações e emoções, por que não sentiste que fora disso que tu és permitem
te fazer e que eu sou permitem me fazer , tudo é morte em nós? Poxa! Em cacos não
há sobrevida, disso eu sei que não tenho feito outra coisa a não ser juntar os
meus, mas na fuga também não! É que tudo vale porque existe o nada...
Ai que, só,
no meio da vida, as escolhas estão cada vez mais escassas, percorro-as com o
risco de mim.
Ai que são
opções fechadas. Tu
Ai que ai!
Começo a.
Sim.
Sim eu te
compreendo. – Mas que inútil compreensão, essa que me mostra a fundura do meu
abismo, a desvalia.
Ai que
preciso agarrar urgente e com força às cordas que me teci e abrir, ainda uma
vez, minha porta à noite e negar, aceitando, ainda uma vez, tua morte, minha
morte, todas as mortes e, quem sabe?,
entre perdas e danos, ressurgir da vida. A porta.
* * *