19 de dez. de 2011

[Crônica] ALBERT CAMUS – Sangue da Liberdade




                por Pedro Luso de Carvalho



        No ano de 1940, a França foi tomada pelas tropas alemãs, de Adolf Hitler. No ano seguinte, Albert Camus ingressava no Movimento da Resistência. Sobre a Resistência, Jean-Paul Sartre viria escrever mais tarde: “Nada do que eu esperava durante esse tempo (a ocupação) a França – com exceção do do Movimento de Resistência – nem sempre demonstrou grandeza de conduta. Mas é preciso lembrar que a resistência ativa tinha de limitar-se, forçosamente, a uma minoria. E eu creio que essa minoria, ao aceitar o martírio conscientemente e sem esperança, mais do que redimiu a nossa fraqueza. [Sartre, resistente, em France, Libre, 1944]. 

        Nesse período, do qual se refere Sartre, os alemães ocuparam Paris no período que compreende o dia 14 de junho de 1940 ao dia 25 de agosto de 1944. Quanto a Camus e sua atuação, na França, esta sob o domínio da Alemanha, o escritor ingressou no Movimento de Resistência em 1941, tendo como suas atribuições a atividade de jornalista e de coordenador de uma setor de informações militares, vinculado ao grupo “Combat”. Assim, Camus passa a viver, em parte, na clandestinidade, tendo os cuidados a ela inerentes, tais como: reservas, cautela, astúcia, aparentes normalidades, etc.

        Inspirado nesse período, em que a França esteve entregue às forças alemãs, Camus escreveu Cartas a um amigo alemão (“Lettres à une ami allemand”), em 1945; e Atuais. Crônicas da atualidade (“Actuelles”), em 1950; o livro, com as duas peças, foi originalmente publicado em Paris pela editora Gallimard. 
       
        Para esta edição, escolhemos, da obra Atuais. Crônicas da atualidade, de Albert Camus, a crônica  Sangue da Liberdade, que segue: 


                        [ESPAÇO DA CRÔNICA]

                        SANGUE DA LIBERDADE
                                     (“Combat”, 24.8.1944)


        Paris faz fogo com todas as suas armas na noite de Agosto. Neste cenário imenso de pedras e de água, em volta desse rio cuja corrente vai cheia de história, voltaram a erguer-se as barricadas da liberdade. Uma vez mais a justiça tem de ser comprada com o sangue dos homens.

      Conhecemos demasiado bem esse combate, a nossa carne e o nosso coração estão demasiado implicados nele, para que aceitemos sem amargura essa terrível condição. Mas também sabemos demasiado bem o que ele representa e qual é a sua verdade para que recusemos o árduo destino que, infelizmente, somos os únicos a suportar. 

        O tempo será testemunha de que os homens de França não queriam matar e que entraram com as mãos limpas numa guerra que não escolheram. Foi preciso que tivessem imensas razões para que as suas mãos pegassem de repente em armas e atirassem sem parar durante a noite sobre esses soldados que, durante dois anos, julgaram que a guerra era fácil.

        Com efeito, as suas razões são imensas. Elas possuem a dimensão da esperança e a profundidade da revolta. São as razões do futuro para um país que durante demasiado tempo quiseram que se mantivesse na ruminação fastidiosa do passado. Hoje Paris luta para que a França amanhã possa falar. Esta noite o povo pegou nas armas porque espera que amanhã haja uma justiça. Alguns dizem que não vale a pena, e que, com paciência, Paris será libertada sem demasiadas perdas. Mas dizem-no porque sentem confusamente a ameaça que representa a insurreição para uma quantidade de coisas que, de outra maneira, ficariam de pé. Pelo contrário, o que é preciso é que isto fique bem assente: ninguém pode pensar que uma liberdade conquistada com tanto sofrimento, terá os aspecto tranquilo e doméstico com que alguns sonham. Esse terrível nascimento é o nascimento de uma revolução.

        Não é possível pensar que esses mesmos homens, que durante quatro anos lutaram no silêncio e durante dias inteiros sob o bombardeio do céu e das armas, permitam o regresso das forças de demissão e de injustiça, quaisquer que sejam os aspectos com que se revistam. Não se pode esperar que eles, que são os melhores, aceitem doravante fazer o que fizeram durante vinte e cinco anos os melhores e os mais puros, e que consistia em amar o país em silêncio e em desprezar, em silêncio, os chefes. Paris que luta esta noite quer mandar amanhã. Não luta pelo poder, mas pela justiça; não luta pela política, mas pela moral; não luta para dominar o país, mas pela sua grandeza.

        A nossa convicção não é que isso se fara, mas que isso se está a fazer hoje, no sofrimento e na obstinação do combate. É por isso que, além da dor dos homens, apesar do sangue e da raiva, desses mortos insubstituíveis, dessas feridas injustas e da cegueira das balas, não são palavras de pesar, mas palavras de esperança terrível de homens a sós com o destino, que é preciso pronunciar.

        Este gigantesco Paris, negro e quente, com duas tempestades, uma no céu e outra nas ruas, parece-nos, ao fim e ao cabo, mais luminoso do que a cidade-luz que nos invejava o mundo inteiro. Brilha com todas as luzes da esperança e da dor, tem a chama da coragem lúcida e todo o esplendor não só da libertação mas também da liberdade próxima.


                                                      (Albert Camus)




REFERÊNCIAS:
EHRLICH, Blake. A Batalha da Resistência. Lisboa: Livros do Brasil - “Resistance. France, 1940 e 1950. Paris: Gallimard, 1965”.
GONZÁLES. Horacio. Camus. São Paulo: Brasiliense, 1983.
CAMUS. Albert. Cartas a um amigo alemão. Lisboa: Edição Livros do Brasil, s/d/ p. 95-99.


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