11 de abr. de 2012

[Poesia] EDGAR ALLAN POE - O Corvo

               
                 



                 por Pedro Luso de Carvalho


    
      Escrevi em outra oportunidade, para meu blog, um texto sobre Edgar Allan Poe e sua Antologia de Contos, e fiz menção à sua poesia, em especial ao seu comovente e imortal poema O Corvo, que o poeta escreveu -o inspirado em Vírgínia Clemm, sua prima-irmã, com quem se casou quando ela tinha apenas treze anos de idade; Virgínia faleceu de tuberculose, em conseqüência da pobreza em que vivia o casal.

        No ano de 1847, Poe teve algumas de suas histórias traduzidas para o francês por Charles Baudelaire, que, num trecho do prefácio que fez para a publicação da obra, disse: “Quanto a sua mulher ideal, a sua Titânide, revela-se em diferentes retratos, esparsos nas suas poesias pouco numerosas, retratos, ou antes maneiras de sentir a beleza, que o temperamento do autor aproxima e confunde numa unidade vaga mas sensível, e esse amor insaciável do Belo, que é seu grande título, isto é, a soma de seus títulos à afeição e ao respeito dos poetas”.

        Mallarmé, um dos expoentes do Simbolismo, continuou a fazer a divulgação das histórias e poesias de Poe, que se viu consagrado nos dois anos que antecederam sua morte. Essa consagração deveu-se não apenas ao conto, mas também à sua poesia, cujos versos falam apenas de mundos interiores, sem qualquer menção ao mundo exterior.
       
        Quanto ao seu imortal poema O Corvo, este só ficou acabado depois de ter sido modificado ao longo de dez anos; Poe era dotado de extraordinária imaginação, qualidade que se somava a outra, qual seja, a de ter sido intransigente no tocante à qualidade literária de sua obra; daí ter despertado o interesse na sua tradução do inglês para muitos idiomas – para o português, o poema também foi traduzido por Machado de Assis e Fernando Pessoa. Passemos ao poema:

                                   
                              [ESPAÇO DA POESIA]


                                                O  C O R V O
                                                         (Edgar Allan Poe)



        Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,
        a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,
        e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,
        tal qual houvesse alguém batido à minha porta, devagar.
       “É alguém”, fiquei a murmurar, “que bate à porta, devagar;
        sim, é só isso e nada mais”.


        Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro
        e o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.
        Ansiava ver a noite finda, em vão a ler, buscava ainda
        algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora
        - essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora
        e nome aqui já não tem mais.


        A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,
        arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.
        De susto, de pávida arritmia, o coração veloz batia
        e a sossegá-lo eu repetia: “É um visitante e pede abrigo.
        Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.
        É apenas isso e nada mais”.


        Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:
       “Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;
        mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,
        que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,
        assim de leve, em hora morta”. Escancarei então a porta:
        escuridão, e nada mais.


        Sondei a noite erma e tranqüila, olhei-a fundo, a perquiri-la,
        sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
        Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,
        só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: “Lenora!”
        E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: “Lenora!”
        Depois, silêncio e nada mais.


        Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,
        mais forte o ruído recomeça e repercute nos vitrais.
       “É na janela”, penso então. “Por que agitar-me de aflição?
        Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,
        o vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.
        É o vento só e nada mais”.


        Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:
        - é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.
        Como um fidalgo passa, augusto, e, sem notar sequer meu susto,
        adeja e pousa sobre o busto – uma escultura de Minerva,
        bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,
        empoleirado e nada mais.


        Ao ver da ave austera a soleníssima figura,
        desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.
       “Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular” – então lhe digo –
       “não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo,
        qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!”
        E o Corvo disse: “Nunca mais”.


        Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,
        misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;
        pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,
        que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,
        uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta
        e que se chama: “Nunca mais!”.


        Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,
        com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.
        Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,
        enquanto a mágoa me envenena: “Amigos... sempre vão-se embora.
        Como a esperança, ao vir a aurora, ELE também há de ir-se embora”.
        E disse o Corvo: “Nunca mais”.


        Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,
        julgo: “É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.
        Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura
        e a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo
        de seu cantor; do morto anelo, um epitáfio: o ritornelo
        de ‘Nunca, nunca, nunca mais’ ”.


        Como ainda ó Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,
        girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais,
        e, mergulhando no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,
        visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,
        com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo
        grasnava sempre: “Nunca mais”.


        Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,
        eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.
        Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada
        dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,
        dessa poltrona em que ELA, ausente, à luz que cai suavemente,
        já não repousa, ah! nunca mais...


        O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso
        ali descesse a esparzir turibulários celestiais.
       “Mísero!”, exclamo. “Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus
        esquecimentos, lá dos céus, para as saudades de Lenora.
        Sorve o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!
        E o Corvo disse: “Nunca mais”.


        “Profeta!”, brado. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal
        que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,
        e algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita
        mansão de horror, que o horror habita – imploro, dize-mo, em verdade:
        EXISTE um bálsamo em Galaad? Imploro! dize-mo, em verdade!”
        E o Corvo disse: “Nunca mais”.


       “Profeta!”, exclamo. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
        Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
        Fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
        Verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora.
        - essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!”
        E o Corvo disse: “Nunca mais”.


       "Seja isso a nossa despedida!”, ergo-me e grito, alma incendiada.
       “Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!
        Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!
        Deixa-me só nesse ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta!
        Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!”
        E o Corvo disse: “Nunca mais!”


        E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,
        sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.
        No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,
        e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.
        Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma;
        e, presa à sombra,não há de erguer-se, ai! nunca mais!



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REFERÊNCIAS:
POE, Edgar Allan. Antologia de Contos. Trad. Brenno Silveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1959.
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Trad. de Oscar Mendes e Milton Amado. São Paulo: Editora Globo, 1999.


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