8 de out. de 2012

[Crônica] RUBEM BRAGA – Ao crepúsculo, a mulher...


   por  Pedro Luso de Carvalho


            RUBEM BRAGA nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo, a 12 de janeiro de 1913, e faleceu no dia 12 de janeiro de 1990. É considerado por muitos críticos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis.

Formou-se em Direito, mas decidiu-se pelo jornalismo, paixão que vinha de sua adolescência, quando escrevia para um jornal de sua cidade. Mais tarde, escreveu para jornais onde residiu: São Paulo, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro.

Fora de nosso país, Rubem Braga fez importantes reportagens, como a cobertura da primeira eleição de Perón, na Argentina, em 1946, e da segunda eleição de Eisenhower, nos Estados Unidos, em 1956.

Nos anos de 1944-1945 acompanhou a Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial, escrevendo suas reportagens para o Diário Carioca.

Rubem Braga também trabalhou para jornais brasileiros com suas reportagens feitas nestes países: México, Portugal, Itália, Inglaterra, França, Grécia, Angola, Moçambique e Africa do Sul.

Exerceu o cargo de Embaixador do Brasil em Marrocos, na África, no período de 1961 a 1963. Depois de demitir-se do cargo, fundou com alguns sócios a Editora do Autor, e de 1967 a 1971 foi sócio da Editora Sabiá.

Quando residiu no Rio de Janeiro o cronista escreveu para jornais e revistas e trabalhou no jornalismo da TV-Globo.

Segue a crônica de Rubem Braga, intitulada  Ao crepúsculo, a mulher... (In Crônicas escolhidas – livro vira-vira 1 / Rubem Braga. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011, p. 474-475):


AO CREPÚSCULO, A MULHER...
                                                                    (Rubem Braga)


Ao crepúsculo a mulher bela estava quieta, e me detive a examinar sua cabeça com atenção e o extremado carinho de quem fixa uma flor. Sobre a haste do colo fino estava apenas trêmula; talvez a leve brisa do mar; talvez o estremecimento do seu próprio crepúsculo. Era tão linda assim, entardecendo, que me perguntei se já estávamos preparados, nós, os rudes homens destes tempos, para testemunhar a sua fugaz presença sobre a terra. Foram preciso milênios de luta contra a animalidade, milênios de milênios de sonho para se obter esse desenho delicado e firme. Depois os ombros são subitamente fortes, para suster os braços longos; mas os seios são pequenos, e o corpo esgalgo foge para a cintura breve; logo as ancas readquirem o direito de ser graves, e as coxas são longas, as pernas desse escorço de corça, os tornozelos de raça, os pés repetindo em outro ritmo a exata melodia das mãos.

Ela e o mar entardeciam, mas,  a um leve movimento que fez, seus olhos tomaram o brilho doce da adolescência, sua voz era um pouco rouca. Não teve filhos. Talvez pense na filha que não teve... A forma do vaso sagrado não se repetirá nestas gerações turbulentas e talvez desapareça para sempre no crepúsculo que avança. Que fizemos desse sonho de deusa? De tudo o que lhe fizemos só lhe ficou o olhar triste, como diria o pobre Antônio, poeta português. O desejo de alguns a seguiu e a possuiu; outros ainda se erguerão como torvas chamas rubras, e virão crestá-la, eis ali um homem que avança na eterna marcha banal.

Contemplo-a... Não, Deus não tem facilidade para desenhar. Ele faz e refaz sem cessar Suas figuras, porque o erro e a desídia dos homens entorpecem Sua mão: de geração em geração, que longa paciência Ele não teve para juntar a essa linha do queixo essa orelha breve, para firmar bem a polpa da panturrilha. Sim, foi a própria mão divina em um momento difícil e feliz. Depois Ele disse: anda... E ela começou a andar entre os humanos. Agora está aqui entardecendo; a brisa em seus cabelos pensa melancolias. As unhas são rubras; os cabelos também ela os pintou; é uma mulher de nosso tempo; mas neste momento, perto do mar, é menos uma pessoa que um sonho de onda, fantasia de luz entre nuvens, avideusa trêmula, evanescente e eterna.

Mas para que despetalar palavras tolas sobre sua cabeça? Na verdade não há o que dizer; apenas olhar, olhar como quem reza, e depois, antes que a noite desça de uma vez, partir.

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Abril, 1956

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