- PEDRO
LUSO DE CARVALHO
DALTON
TREVISAN passou a adotar o conto, no início dos anos 60, como o fizeram outros
escritores brasileiros. Juntamente com Trevisan, destacaram-se, nesse gênero
literário: Rubem Fonseca, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles. O sucesso
do conto, a partir essa época, deveu-se não apenas aos talentosos escritores,
mas, também, por ser formatado em uma narrativa de no máximo 20 a 25 páginas,
deixando para trás a histórias mais longas e caudalosas, como disse Italo
Moriconi.
Sergius
Gonzaga, professor da Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, menciona no seu livro Curso de Literatura Brasileira, os nomes
mais importantes do conto do século XX: Isaac
Babel (russo), Katherine Mansfield (neozelandesa), Ernest Hemingway (norte-americano), Jorge Luis
Borges e Julio Cortázar (argentinos), os brasileiros Dalton Trevisan e Rubem
Fonseca.
Segue o
conto A pinta preta da paixão, de Dalton Trevisan, conto que integra o
livro A trombeta do anjo vingador (In
Trevisan, Dalton. A trombeta do anjo
vingador. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record,
1981, p. 64-67):
[ESPAÇO DO CONTO]
A PINTA PRETA DA PAIXÃO
[ DALTON TREVISAN ]
Casou
com a moça bonita e pobre, forçada pelos pais. Escrivão, bom partido, vinte
anos mais velho. De vingança, nos primeiros meses ela o enganou com o dentista.
Não é do marido a filha única. Marca da traição, a vergonhosa pinta de beleza,
canto esquerdo do lábio, no dentista como na menina.
Com o
escândalo João mudou de cidade. Nunca mais foi visto com a mulher. Balançava as
compridas pernas entre o cartório, o clube, a igreja. Na fila indiana dos
filhos de Maria, larga fita azul no peito, rezando e cantando de mão posta.
Como escrivão, o privilégio de segurar uma vara do pálio na procissão.
Ela,
pecadora arrependida, uma vela acesa na mão, protegida do vento na concha
branca de papel. Com os anos passou a usar óculo, que a enfeou. O nariz quem
sabe maior. E, última prova da paixão, o dentinho de ouro.
Espirrando
o pó dos autos, com dois dedos João batia a certidão na velha máquina, sem til
nem cedilha, acrescentados em tinta roxa. Toda noite no clube, jogador aflito e
sem sorte. Só levantava para ir ao banheiro, deixando o óculo sobre as cartas,
ao lado do pratinho com rodelas de salame. Além de espiar-lhe as cartas, os
parceiros esfregavam na lente a casca de salame.
De vez
em longe examinados os autos pelo juiz, que o intimava a repor o dinheiro dos
órfãos. Em desespero, recorria aos dois agiotas da cidade.
A filha
Zezé cresceu, muito lindinha, mais parecida com o dentista. Apaixonou-se pelo
Josias, que dela se aproveitou. Os pais não queriam o namoro. Ela se encontrava
no beco escuro, à noite no cinema, até o campinho de futebol.
Abandonada
pelo sedutor, ingeriu quinze comprimidos de aspirina. Não morreu, agora com
tossinha nervosa que disfarça a dispepsia crônica. Sem amigas, repudiada pelas
mães dos alunos, proibido o salão de baile. Guarda-pó dobrado no braço,
transferida para a escola isolada no fundão. Sempre cativa do Josias, saudoso
no saxofone da bandinha. Ela quem paga as prestações da fogosa moto vermelha.
Só para vê-lo em nuvem de pó com outra na garupa.
Debaixo
da porta João achou uma carta anônima. Datilografada, acusando a mulher de
adúltera. E a filha bastardinha. Sem comentário, ele a deixou na cristaleira da
sala, ao pé do elefante amarelo.
Muitas
cartas chegaram, essas, pelo correio. Uma para o padre, narigão purpurino do
abuso de vinho. Outras para os dois agiotas, prometendo as brasas vivas do
inferno. Todas da velha máquina sem til nem cedilha.
Aposentado,
careca, branco olho esbugalhado, João repartia-se entre o vício e a salvação.
Sozinho à tarde na igreja, balbuciante, mão no rosto.
Se ele
demorava além da meia-noite no clube, a negra enfiava a cabeça na vidraça
quebrada:
– Dona Maria
chamando.
Só para
não deixá-lo ganhar.
Na tarde
calmosa a dona comprou fio, agulha, botão. De volta, cambaleante no corredor do
vizinho.
– Não me
sinto bem.
Amparada
até o sofá de palhinha.
– Sente,
dona Maria. Que passa.
Suor
frio, óculo embaraçado, negra boca torta.
– Um copo
d’água.
Correu a
vizinha com as gotas de coramina. Sentada quietinha, ouro faiscando no dente,
apertava no peito os dois novelos azuis de lã.
No
velório, de tão feio o velho parecia triste. O enterro com pequeno acompanhamento,
ele ao lado da moça, maior a pinta no canto do lábio. Nem uma vez se abraçaram
nem se deram as mãos.
Mesmo
dia foi visto arrastando o sapatão pela praça.
– O João
fora de casa. Sem guardar nojo. Não é esquisito?
– Alguma
precisão.
A hora
habitual quem entrava no clube para ocupar a cadeira diante do pratinho com
rodela de salame?
– Agora posso
jogar sossegado.
Desde
essa noite a sorte mudou e, nos cinco anos que viveu, ganhador de mão cheia.
Do outro
lado da rua seguem-no os piás boquiabertos e medrosos. Altão, guarda-chuva
furado e de varetas quebradas, sacode os longos braços e fala sozinho. Sempre
os bolsos inchados de pedras – ao vê-lo os cachorros apostam quem o morde
primeiro.
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REFERÊNCIA:
GONZAGA, Sergius. Curso de
Literatura Brasileira. Porto
Alegre: Editora Leitura XXI, 2004, p. 28.
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