19 de out. de 2012

[Conto] RICARDO RAMOS - Colagem


por Pedro Luso de Carvalho


RICARDO RAMOS (1929 – 1992)  filho de um dos nomes mais importantes da literatura brasileira, Graciliano Ramos, escreve sobre a cidade grande, retratando-a nos seus problemas, na celeridade que a caracteriza, que mostra,  no seu âmago, um redemoinho de paixões, injustiças e pressões, nas quais se consomem os que a habitam, presos que vivem nas teias da sociedade de consumo.

Ricardo Ramos recebeu muitos prêmios, dentre eles, o prêmio da Academia Brasileira de Letras (conto e romance); o prêmio Jaboti, que lhe foi concedido por três vezes; prêmio da Câmara Brasileira do Livro (conto, novela e romance); prêmio Guimarães Rosa, prêmio pelo conjunto da obra do contista. Sobre o seu trabalho, Jorge amado deu o seu testemunho: “O ficcionista Ricardo Ramos é hoje um dos melhores escritores que possuímos, num país de tantos gênios e tão poucos escritores. Um escritor muito nosso, não apenas pelos temas, mas principalmente pelo sentimento brasileiro”.

Segue o conto Colagem, de Ricardo Ramos (In Os amantes iluminados / Ricardo Ramos. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 77-81):
           

[ESPAÇO DO CONTO]

COLAGEM
(Ricardo Ramos)


As pás dos três ventiladores, suspensos do teto como velhos brinquedos de corda, são hirtas flores coloniais que girando roçam o calor, sem, todavia abrandá-lo, pairam avoadas e insistentes.

Mas o zumbido que fazem, de abelheira, de metal, dilui no silêncio mecanizado os repentes do sino batendo longe, do vizinho cantar do galo, expulsa os rarefeitos sons da manhã para fora da sala.

Mas tanto um como outro, o zunir, depois de vistos e ouvidos convergem, se mesclam acalorados, abafados, e incorporados ficam afinal encantando, adormecendo, bloco ou matéria de modorra.

Se fosse dia comum, não sentiria assim o calado verão, já que sua voz cobriria a zoada entre as carteiras, e andando para lá e para cá, disfarçaria a sensação opressiva. Se não fosse dia de prova, os alunos estariam exigindo atenção, por desatentos, e não desse jeito concentrado a escreverem, cabeças baixas. Se normal, habituado, o dia não lhe traria calor e silêncio como argamassa de ligar, unir, tecer os fragmentos ao redor, recuados quem sabe acabariam por se revelar em pegajosa moldura.

Cores, claridade. No espaventado sol que ilumina, pelos vitrais basculantes derrama uma luz crua, tudo vibra avivado. As tonalidades violentas de roupas, sacolas, pastas. Baixando a vista, percebe de soslaio as pequenas centelhas. Ao levantá-la, sucedem-se como explosões as granadas vermelhas, amarelas, verdes, os abrandados ou lacrimosos foguetes azuis, castanhos, que logo se modificam e combinam, moda, caleidoscópio, em verde-amarelo, roxo-laranja, azul verde. Um campo de batalha. A terra-de-ninguém deixou  o preto e o branco, o cinzento, passou ao anilado dos jeans. Feito uma base, sustentando as labaredas dos incêndios. Como a blusa escarlate na ponta da fila, que fere os olhos cintilando, maravilha sulferina estilhaçada. Mancha.

As pás dos ventiladores puxam o colorido para cima. As mãos sobre a mesa pegam o cigarro com filtro. As primeiras brumas da fumaça distanciam a sala.

Eu reino por um livro, mesmo de reler. Se tivesse trazido, não estaria à toa suando, passivo a esperar que os ponteiros dessem a volta no pulso. Mas o remédio, é ficar olhando.

Traços, desenho. Nas paredes que eram brancas, os grafites aproximam o fim do ano: mensagens, molecagens, motivos. Ó essa juvenil e compulsiva sede de expressão. “Abaixo a violência, merda!” “Virgindade é vício”. “Aqui nada se cria, tudo se copia.” Da guerra matizada, um filme exposto em alto-contraste, vou recolhendo as linhas de ligar. Figuras, principalmente. Esqueço as roupas, as cabeleiras, e fico na sombra dos rostos. Palidamente esbatidos. Circulo a vista, pegando pedaços, paro. Na moça de perfil delicado, frágil, que se inclina. Ela tem uma beleza antiga, de mármore, que destoa do momento e recua, muito, essa beleza clássica. E me acende antigos fogos. Quero reanimá-la, ressuscitá-la, trazê-la à tona, e por três dias, num carnaval incendiado, fauno, centauro, ser mitológico de endeusados recursos, deitar e rolar por ela toda, até que a morte de novo nos separe. Ou a vida.

 Ao cambio de hoje, estamos. Olhe a minissaia, convivendo com as aciganadas, e as camisetas, os bustiês, as bermudas e bombachas que enganam. Em tudo se quer profundidade.

São as pás, os pés, as pernas. Dos ventiladores aos ventilados. Nem tanto nesta aplicada manhã, tão provável. Elimine os ruídos, prefira o silêncio mesmo suado. E fira fundo.

Massas, contorno. A classe tem as suas dimensões, geométricas no geral e anatômicas em particular. Entre as quatro paredes, ainda que tantos se comprimam alinhados, existe a percepção mais íntima. Curva de seio,  vão de coxa. O espectador, por avulso que esteja, detecta e detona. Quanto mais o privilegiado que da cátedra pontifica. Bobagem isso de cátedra, eu nem estou falando, é um simples posto de observação. Em Casablanca, em Macondo, ou no Turquetão bravio, nos Saaras de areia e coral dos Mares do Sul, porque aqui entre nós não faz calor nem ninguém sua, nunca vi em livro ou em filme, somos civilizados e negociamos um palmo de terra ali em frente. Lindas pernas, Vilela, até onde a vista alcança. Vou e volto, me desloco e descambo, alçado evito as nossas fronteiras naturais, assumo as psicológicas, dou uma de personagem superior, minhas polainas, meu gibão, e fagueiro fumo. No entanto, adivinho o fogo neste além-cigarro torpor que chega, de dentro, de baixo, sou eu me levantando. E espacejo e disfarço e controlo as olhadas, não me assanho assim, e nas pausas penso em conivência e exposição e colher-de-chá. Penso, logo refluo. Com moral e compostura.

Se não houver atraso, por culpa dos delinquentes que garatujam e depois passam a limpo, dentro de quinze minutos a coisa acaba. Se eles não forem mais resistentes do que eu, pelo menos ao calor, a pilha de provas entregues vai subir na minha frente com o ritmo normal. Se os deuses e os militares permitirem, meu fim de semana estará garantido: lerei cores e traços e volumes  a propósito de comunicação comparada.

E saberei de linguagens, as elementares e as que se desdobram, posta numa língua para mim fascinante. Eu me lembrarei de pastas, perfis, pernas, e me guiarei pelo atual até o gestual não escrito, e sinalizado sobrenadarei como um náufrago. E me recolhendo alcançarei a praia, uma nesga de terra firme que preciso, entre mim e eles, ou de mim neles, ou apesar deles, ou que só me deixem.

Mas lerei tudo na minha mesa, na minha janela que se abre para árvores e casas, na minha paisagem de cima que me garante. Mas lerei tudo sem calor nem suor, tudo no meu mirante, alerta como um espanhol elevado, na sua cidade fria comandando, há tantos índios depois do mar oceano. Mas lerei tudo calmamente, eu posto diante dos ramos, tão verdes e cambiantes, não mereci esses plantados seculares, essas brisas de agora, são as minhas circunstâncias que nem esperei.

Leio e dou notas. A mim ou a eles? Não me importo muito, eu tenho filhos e netos. Que são eu. Ou nem serão. Eu também tenho saudades do que nunca fui nem vivi. Sei do meu jovem debaixo da pele, e do que avulso transita, alheio, ligado, atuante, contestação é agressão? Será tanto, será apenas? Não digo mas sinto que não. As tonalidades arrefecem, como os desenhos e as profundezas, bandeiras esmaecidas contra o vento. E a juventude vira uma quadra humilde.


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