por
Pedro Luso de Carvalho
RICARDO RAMOS (1929 – 1992) filho de um dos nomes mais importantes da
literatura brasileira, Graciliano Ramos, escreve sobre a cidade grande,
retratando-a nos seus problemas, na celeridade que a caracteriza, que mostra, no seu âmago, um redemoinho de paixões,
injustiças e pressões, nas quais se consomem os que a habitam, presos que vivem
nas teias da sociedade de consumo.
Ricardo Ramos recebeu muitos prêmios, dentre
eles, o
prêmio da Academia Brasileira de Letras (conto e romance); o prêmio Jaboti, que
lhe foi concedido por três vezes; prêmio da Câmara Brasileira do Livro (conto,
novela e romance); prêmio Guimarães Rosa, prêmio pelo conjunto da obra do
contista. Sobre o seu trabalho, Jorge amado deu o seu testemunho: “O
ficcionista Ricardo Ramos é hoje um dos melhores escritores que possuímos, num
país de tantos gênios e tão poucos escritores. Um escritor muito nosso, não
apenas pelos temas, mas principalmente pelo sentimento brasileiro”.
Segue o conto Colagem, de Ricardo Ramos (In Os amantes iluminados / Ricardo Ramos. Rio de Janeiro: Rocco,
1988, p. 77-81):
[ESPAÇO
DO CONTO]
COLAGEM
(Ricardo Ramos)
As pás
dos três ventiladores, suspensos do teto como velhos brinquedos de corda, são
hirtas flores coloniais que girando roçam o calor, sem, todavia abrandá-lo,
pairam avoadas e insistentes.
Mas o
zumbido que fazem, de abelheira, de metal, dilui no silêncio mecanizado os
repentes do sino batendo longe, do vizinho cantar do galo, expulsa os
rarefeitos sons da manhã para fora da sala.
Mas
tanto um como outro, o zunir, depois de vistos e ouvidos convergem, se mesclam
acalorados, abafados, e incorporados ficam afinal encantando, adormecendo,
bloco ou matéria de modorra.
Se
fosse dia comum, não sentiria assim o calado verão, já que sua voz cobriria a
zoada entre as carteiras, e andando para lá e para cá, disfarçaria a sensação
opressiva. Se não fosse dia de prova, os alunos estariam exigindo atenção, por
desatentos, e não desse jeito concentrado a escreverem, cabeças baixas. Se
normal, habituado, o dia não lhe traria calor e silêncio como argamassa de
ligar, unir, tecer os fragmentos ao redor, recuados quem sabe acabariam por se
revelar em pegajosa moldura.
Cores,
claridade. No espaventado sol que ilumina, pelos vitrais basculantes derrama
uma luz crua, tudo vibra avivado. As tonalidades violentas de roupas, sacolas,
pastas. Baixando a vista, percebe de soslaio as pequenas centelhas. Ao
levantá-la, sucedem-se como explosões as granadas vermelhas, amarelas, verdes,
os abrandados ou lacrimosos foguetes azuis, castanhos, que logo se modificam e
combinam, moda, caleidoscópio, em verde-amarelo, roxo-laranja, azul verde. Um
campo de batalha. A terra-de-ninguém deixou
o preto e o branco, o cinzento, passou ao anilado dos jeans. Feito uma
base, sustentando as labaredas dos incêndios. Como a blusa escarlate na ponta
da fila, que fere os olhos cintilando, maravilha sulferina estilhaçada. Mancha.
As pás
dos ventiladores puxam o colorido para cima. As mãos sobre a mesa pegam o
cigarro com filtro. As primeiras brumas da fumaça distanciam a sala.
Eu
reino por um livro, mesmo de reler. Se tivesse trazido, não estaria à toa suando,
passivo a esperar que os ponteiros dessem a volta no pulso. Mas o remédio, é
ficar olhando.
Traços,
desenho. Nas paredes que eram brancas, os grafites aproximam o fim do ano:
mensagens, molecagens, motivos. Ó essa juvenil e compulsiva sede de expressão.
“Abaixo a violência, merda!” “Virgindade é vício”. “Aqui nada se cria, tudo se
copia.” Da guerra matizada, um filme exposto em alto-contraste, vou recolhendo
as linhas de ligar. Figuras, principalmente. Esqueço as roupas, as cabeleiras,
e fico na sombra dos rostos. Palidamente esbatidos. Circulo a vista, pegando
pedaços, paro. Na moça de perfil delicado, frágil, que se inclina. Ela tem uma
beleza antiga, de mármore, que destoa do momento e recua, muito, essa beleza
clássica. E me acende antigos fogos. Quero reanimá-la, ressuscitá-la, trazê-la
à tona, e por três dias, num carnaval incendiado, fauno, centauro, ser
mitológico de endeusados recursos, deitar e rolar por ela toda, até que a morte
de novo nos separe. Ou a vida.
Ao cambio de hoje, estamos. Olhe a minissaia,
convivendo com as aciganadas, e as camisetas, os bustiês, as bermudas e
bombachas que enganam. Em tudo se quer profundidade.
São as
pás, os pés, as pernas. Dos ventiladores aos ventilados. Nem tanto nesta
aplicada manhã, tão provável. Elimine os ruídos, prefira o silêncio mesmo
suado. E fira fundo.
Massas,
contorno. A classe tem as suas dimensões, geométricas no geral e anatômicas em
particular. Entre as quatro paredes, ainda que tantos se comprimam alinhados,
existe a percepção mais íntima. Curva de seio,
vão de coxa. O espectador, por avulso que esteja, detecta e detona.
Quanto mais o privilegiado que da cátedra pontifica. Bobagem isso de cátedra,
eu nem estou falando, é um simples posto de observação. Em Casablanca, em
Macondo, ou no Turquetão bravio, nos Saaras de areia e coral dos Mares do Sul,
porque aqui entre nós não faz calor nem ninguém sua, nunca vi em livro ou em
filme, somos civilizados e negociamos um palmo de terra ali em frente. Lindas
pernas, Vilela, até onde a vista alcança. Vou e volto, me desloco e descambo,
alçado evito as nossas fronteiras naturais, assumo as psicológicas, dou uma de
personagem superior, minhas polainas, meu gibão, e fagueiro fumo. No entanto,
adivinho o fogo neste além-cigarro torpor que chega, de dentro, de baixo, sou
eu me levantando. E espacejo e disfarço e controlo as olhadas, não me assanho
assim, e nas pausas penso em conivência e exposição e colher-de-chá. Penso,
logo refluo. Com moral e compostura.
Se não
houver atraso, por culpa dos delinquentes que garatujam e depois passam a
limpo, dentro de quinze minutos a coisa acaba. Se eles não forem mais
resistentes do que eu, pelo menos ao calor, a pilha de provas entregues vai
subir na minha frente com o ritmo normal. Se os deuses e os militares permitirem,
meu fim de semana estará garantido: lerei cores e traços e volumes a propósito de comunicação comparada.
E
saberei de linguagens, as elementares e as que se desdobram, posta numa língua
para mim fascinante. Eu me lembrarei de pastas, perfis, pernas, e me guiarei
pelo atual até o gestual não escrito, e sinalizado sobrenadarei como um
náufrago. E me recolhendo alcançarei a praia, uma nesga de terra firme que
preciso, entre mim e eles, ou de mim neles, ou apesar deles, ou que só me
deixem.
Mas
lerei tudo na minha mesa, na minha janela que se abre para árvores e casas, na
minha paisagem de cima que me garante. Mas lerei tudo sem calor nem suor, tudo
no meu mirante, alerta como um espanhol elevado, na sua cidade fria comandando,
há tantos índios depois do mar oceano. Mas lerei tudo calmamente, eu posto
diante dos ramos, tão verdes e cambiantes, não mereci esses plantados
seculares, essas brisas de agora, são as minhas circunstâncias que nem esperei.
Leio e
dou notas. A mim ou a eles? Não me importo muito, eu tenho filhos e netos. Que
são eu. Ou nem serão. Eu também tenho saudades do que nunca fui nem vivi. Sei
do meu jovem debaixo da pele, e do que avulso transita, alheio, ligado,
atuante, contestação é agressão? Será tanto, será apenas? Não digo mas sinto
que não. As tonalidades arrefecem, como os desenhos e as profundezas, bandeiras
esmaecidas contra o vento. E a juventude vira uma quadra humilde.
* * *