23 de dez. de 2016

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[Crônica] LUIS FERNANDO VERISSIMO – A comadre





PEDRO LUSO DE CARVALHO


Luis Fernando Veríssimo, um dos escritores brasileiros mais importantes, nasceu em Porto Alegre, em 1936. No ano de 1969 o jornal Zero Hora, começa a publicar as suas crônicas. Nesse mesmo ano começou a trabalhar para a MPM Propaganda, como redator de publicidade. Mais tarde suas crônicas são publicadas nos jornais O Estado de São PauloJornal do Brasil e Zero Hora.

Publicou algumas dezenas de livros: O popular (J.Olympio, 1973), Ed Mort e outras histórias (L&PM, 1979), O analista de Bagé (L&PM, 1980), A velhinha de Taubaté (L&PM, 1983), Aventuras da Família Brasil (quadrinhos, L&PM, 1985), O marido do doutor Pompeu (L&PM, 1987), O suicida e o computador (L&PM, 1992), Comédias da vida privada (L&PM, 1994),  Américas (Artes e Ofícios, 1994), entre outros.

L. F. Veríssimo foi homenageado com o Prêmio Scopus pela Sociedade Brasileira de Amigos da Universidade Hebraica de Jerusalém, em novembro de 2011, em evento no Buffet França, em São Paulo. A honraria foi entregue ao escritor por Arnaldo Niskier, membro da Academia Brasileira de Letras.

Segue o conto A comadre, de Luis Fernando Veríssimo (In O marido do doutor Pompeu/Luis Fernando Verissimo. 2ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 119-120):



[ESPAÇO DA CRÔNICA]



A COMADRE

 (Luis Fernando Verissimo )



veraneio terminou mal. A ideia dos dois casais amigos, amigos de muitos anos, de alugarem uma casa juntos deu errado. Tudo por culpa do comentário que o Itaborá fez ao ver Mirna, a comadre Mirna, de biquíni fio dental pela primeira vez. Nem tinha sido um comentário. Mas um som indefinido.

– Omnahnmon!

Aquilo pegara mal. A própria Mirna sorria sem jeito. O compadre Adélio fechara a cara, mas decidira deixar passar. Afinal era o primeiro dia dos quatro na praia, criar um caso naquela hora estragaria tudo. Eram amigos demais para que um simples deslize – o som fora involuntário, isto era claro – acabasse com tudo. E, ainda por cima, a casa já estava paga por um mês.

Naquela noite, no quarto, a Isamar pediu satisfação ao marido.

– Pô, Itaborá. Qual é?

– Não pude controlar, puxa.

– Na cara do Adélio!

– Eu sei. Foi chato. Mas saiu. Que eu posso fazer?

– Nós conhecemos a Mirna e o Adélio há o quê? Quase dez anos.

– Mas eu nunca tinha visto a bunda da Mirna.

– Ora, Itá!

– Não entende? A gente pode conviver com uma pessoa dez, vinte anos, e ainda se surpreender com ela. A bunda de Mirna me surpreendeu, é isso. Me pegou desprevenido.

– Vai dizer que você nunca nem imaginou como era?

– Nunca. Juro. Nem me passou pela cabeça. E de repente estava ali, toda. Toda ali.

– Pois vê se te controla.

Pelo resto do veraneio o Itaborá fez questão de nem olhar para o fio dental da comadre. Quando os quatro iam para a praia, se apressava para caminhar na frente. Se por acaso as nádegas da comadre passassem pelo seu campo de visão, olhava para o alto, tapava o rosto com o jornal, assobiava.

Um dia, o Itaborá e o Adélio sentados no quintal, a Mirna recém-servira a caipirinha, de biquíni, e se dirigia de volta para casa, e o Itaborá suspirou.

– O que foi – perguntou o Adélio, agressivo.

– Essa política econômica – disse o Itaborá. – Sei não. Não levo fé.

– Ah – disse o Adélio.

Até o fim do veraneio ficou aquela coisa chata entre os quatro. O Itaborá não podia tossir que todos o olhavam, desconfiados.




      
        *  *  *

19 de set. de 2013

JOHN CHEEVER - Pulitzer e Outros Prêmios



 –  PEDRO LUSO DE CARVALHO


Não faz muito tempo, encontrei na Feira do Livro de Porto Alegre um livro do escritor norte-americano John Cheever, nascido em Quincy, Massachusetts, 1912, com o título de Até Parece o Paraíso, editado pela Companhia Das Letras.

Sobre essa obra o escritor John Upidike escreveu para The New Yorker: “Encantadora comédia suburbana, tão direta que chega a nos desarmar. Cheever exalta a sublime poesia da vida. Na criação de imagens e acontecimentos é um escritor sem igual na ficção americana contemporânea”.

Diante da qualidade do seu texto, procurei outras obras do escritor; encontrei o romance A Crônica dos Wapshot, que a crítica estadunidense considerou um dos cem melhores romances da língua inglesa; com ele John Cheever ganhou o importante prêmio National Book Award de 1958. Mais três importantes prêmios foram conquistados por John Cheever: em 1978 o Prêmio Pulitzer e Medalha Edward MacDowell; em 1981 a National Medal for Literature.

Embora muito conhecido pelos norte-americanos pela qualidade de sua obra, John Cheever era até pouco tempo desconhecido no Brasil. Por ocasião de sua morte, ocorrida em 1982 na localidade de Ossininng, Nova York, a Folha de S. Paulo publicou apenas um pequeno texto de Paulo Francis sobre o escritor.

Quando o romance A Crônica dos Wapshot foi lançado nos Estados Unidos, em 1957, os críticos literários receberam a obra com grande surpresa pelo fato de ter sido esse o primeiro romance do escritor. Essa obra foi publicada no Brasil pela Editora ARX em 2002.

Na data do lançamento desse romance, John Cheever estava com 45 anos de idade, ao passo que há muitos anos dedicava-se a escrita de contos; como contista, era comparado por muitos críticos de literatura norte-americanos a Anton Tchekhov – este, um dos mais importantes contistas de todos os tempos.

Em A Crônica dos Wapshot, Cheever conta a história de uma família de classe média da Nova Inglaterra na qual estão presentes personagens que a ela dão força e consistência, como é o caso Leander Wapshot, homem tranquilo absorvido pelo trabalho em seu velho barco e oprimido pela esposa dominadora, Mrs Wapshot, e por outra mulher, Honora, sua prima excêntrica.

Os dois filhos do casal Wapshot, Moses e Coverly, também são personagens importantes; eles trocam a pequena cidade em que nasceram por Washington, para onde vão à busca de trabalho. Com os acontecimentos que se intercalam entre Washington e St. Botolphs a narrativa ganha novas nuances. Melhor será mostrar um trecho de A Crônica dos Wapshot:

“Que coisa frágil é o homem. A despeito dos bagos e da bazófia, um simples sussurro é capaz é de transformar sua alma em cinzas. O gosto de sal numa casca de uva, o cheiro do mar, o calor do sol de primavera, frutos amargos e doces, um grão de areia nos dentes – tudo isso que entendia por vida lhe estava sendo tirado. Onde estavam os crepúsculos serenos de sua velhice? Arrancaria os próprios olhos. Ao ver o brilho de vela em seu navio – ele o trouxera de volta ao porto em meio a ventanias e tempestades – sentiu-se espectral e desvirilizado. Foi à gaveta da cômoda e pegou, debaixo da rosa desidratada e da trança de cabelo, a pistola carregada. Aproximou-se da janela. Os fogos do dia se extinguiam como uma conflagração numa cidade industrial, e acima da cúpula do celeiro viu a estrela Vésper, doce e rotunda feito lágrima humana. Disparou a pistola pela janela e caiu no chão”.

      
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12 de set. de 2013

FERNANDO NAMORA - Sua Obra


  

            -  PEDRO LUSO DE CARVALHO


           FERNANDO NAMORA (Fernando Gonçalves Namora) nasceu a 15 de abril de 1919, em Condeixa (Coimbra), Portugale faleceu em Lisboa no dia 31 de Janeiro de 1989. Iniciou o curso secundário em Coimbra, continuou em Lisboa e o concluiu na cidade Coimbra, onde se formou em Medicina, em 1942. Mais tarde, Mário Sacramento escreveria: “Fernando Namora foi, desde sempre, ‘médico-escritor’ e, com o dobrar dos anos, tornou-se ‘escritor-médico’.”

Em 1937 o grande escritor português fez sua estreia nas letras com o livro de poemas Relevos e com o romance Sete partidas do mundo. Em 1940 e 1941 publicou mais dois livros de poesia, Mar de Sargaço e Terra. Em 1959 sua obra poética foi reunida no livro As frias madrugadas. Em 1969 lançou Marketing, outro livro de poesia.

O seu primeiro grande romance foi Fogo na noite escura (1943). Depois foram editadas, entre outras obras de Fernando Namora: Casa de Malta, novela, 1945; A noite e a madrugada, romance, 1950; O trigo e o joio, romance, 1954; O homem disfarçado, romance, 1957.

Fernando Namora recebeu os seguintes prêmios: Prêmio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa, pelo romance Minas de São Francisco (1946); Prêmio Vértice, pelas narrativas  Retalhos da vida de um médico (1ª série, em 1949); Prêmio José Lins do Rego, pelo romance Domingo à tarde (1961).

O escritor tem seus livros traduzidos para o castelhano, catalão, francês, inglês, alemão, italiano, romeno, checo, russo, esperanto, sueco, holandês, búlgaro etc. Fogo na noite escura é o oitavo livro de Fernando Namora editado no Brasil.

No seu romance Domingo à tarde (Prêmio José Lins do Rego) Fernando Namora conta em uma história densa; o tratamento que dá às personagens deixa transparecer uma sensibilidade incomum; as abordagens que faz sobre a miséria humana, miséria essa que o cerca no seu dia-a-dia no hospital, no qual exerce sua profissão de médico.

Em Domingo à tarde o escritor demonstra saber lidar com os sentimentos mais íntimos das personagens que povoam o hospital, ambiente impregnado de dor, de angústia, de esperança e de desesperança. Namora demonstra ter um profundo conhecimento da alma humana, e faz com que o leitor se torne cúmplice das suas personagens.

 Nesse romance (Domingo à tarde) o escritor desperta no leitor um forte sentimento de compaixão e solidariedade pelos seus infortúnios, sentimentos esses que se mesclam com um traço de culpa, como se quem o lê também seja responsável por todo o caos social que passa a permear a sua narrativa.

Melhor que falar é mostrar um trecho do romance Domingo à tarde, para então podermos concordar com o que diz Fernando Mendonça, sobre o talento desse grande escritor português: "Ler um texto de Fernando Namora é volvermos os olhos para imutável perfeição clássica da nossa língua. A sua elasticidade, o seu equilíbrio e simultaneamente as suas largas pinceladas impressionistas fazem desse texto uma lição permanente da língua portuguesa”.

Segue um trecho do romance Domingo à tarde, de Fernando Namora (In Domingo à tarde/Fernando Namora. Porto Alegre: Globo, 1963, p. 107):



DOMINGO À TARDE (fragmento)
 (Fernando Namora)


PEDIA-ME aqueles nadas que reanimam uma vida. Enfim: a torpe ilusão de que poderia haver um erro ou uma possibilidade. Mas nem só Clarisse necessitava dessa ilusão, embora fosse eu, que também dela necessitava, a última pessoa que a doença pudesse burlar. Não era apenas a magreza, o embaciado amarelento da face, os olhos que começavam a parecer desmedidos, isolados numa paisagem desabitada: as próprias feições se tinham alterado. A gente percebia-lhe, com uma ácida e progressiva nitidez, a corrupção. No entanto, à medida que essa decadência se acentuava, menos eu a queria admitir. Pela primeira vez, por assim dizer, nessa revolta das vísceras, eu fazia a violenta descoberta da morte – através de uma pessoa viva. Durantes as minhas longas vigílias de cigarros trespassava-me o eco de longínquas vozes.



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REFERÊNCIA:
NAMORA, Fernando. Fogo na noite escura. Prefácio de Nelly Novaes Coelho. Notas bibliográficas de João Alves das Neves. São Paulo: Editor Verbo, 1973.

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6 de set. de 2013

[Literatura] RUBEM FONSECA / Escritor Premiado




-  PEDRO LUSO DE CARVALHO
             

Natural Juiz de Fora, MG, Rubem Fonseca nasceu em 11 de maio de 1925. Formou-se em Direito na cidade do Rio de Janeiro, onde, por alguns anos, exerceu o cargo de Inspetor de Polícia, função pública da qual se exonerou para dedicar-se à literatura. Como contista e romancista teve sua obra publicada em vários países, em muitos deles, como ocorreu no Brasil, recebeu inúmeros prêmios literários, como reconhecimento de sua obra, tanto pelo público como pela crítica especializada.

Sua extensa obra literária, nos gêneros conto e romance, receberam, dentre outros os prêmios: Pen Club do Brasil (A coleira do cão); Câmara do Livro de São Paulo (A coleira do cão); Associação Paulista de Críticos de Arte (O cobrador); Prêmio Goethe (A grande arte); Prêmio Giuseppe Acerbi, Mantova, Itália (Vaste emozione e pensie imperfeti); Jabuti (O buraco na parede – conto); Prêmio Machado de Assis, Biblioteca Nacional (E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto); Prêmio Eça de Queiroz da União Brasileira de Escritores (A confraria dos Espadas – conto); Prêmio de melhor romance do ano, da Associação Paulista de Críticos de Arte (O doente Molière); Prêmio Luis de Camões, Brasil/Portugal, pelo conjunto da obra, em 2003; 14º Prêmio de Literatura Latino-americana e Caribe Juan Rulfo, México, em 2003.

Rubem Fonseca também foi premiado como roteirista de cinema pelos roteiros dos filmes: Relatório de um homem casado, dirigido por Flávio Tambelini (prêmio Coruja de Ouro); Stelinha, dirigido por Miguel Faria (prêmio Kikito do Festival de Cinema de Gramado); A grande arte, dirigido por Walter Salles Jr. (prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte).

Os livros de conto de Rubem Fonseca são: Os prisioneiros (1963), A coleira do cão (1965) Lúcia McCartney (1967) Feliz Ano Novo (1975), O cobrador (1979), Romance negro e outras histórias (1992), O Buraco na parede (1995), Histórias de amor (1997), Confraria dos Espadas (1998), Secreções, excreções e desatinos (2001), Pequenas criaturas (2002), Diário de um Fescenino (2003), 64 Contos de Rubem Fonseca (2004). No gênero romance Rubem Fonseca publicou: O caso Morel (1973), A grande arte (1983), Bufo & Spallanzani (1986), Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988), Agosto (1990), O selvagem da ópera (1994). Novela, Rubem Fonseca escreveu duas: Do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (1997); O doente Molière (2000).

O professor de Literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Sergius Gonzaga, no seu livro Curso de Literatura Brasileira, Editora Leitura XXI, Porto Alegre, 2004, 1ª edição, no capítulo Ficção Contemporânea II (1970 aos dias atuais), Principais Autores, discorre sobre a obra de Rubem Fonseca, dizendo que começou sua carreira na década de 1960 com a publicação de dois livros de contos, e que somente na década de 1970 sua obra começou a ter repercussão. Diz, a seguir, que, “Ao lado de Dalton Trevisan, ajudou a revolucionar a história curta no país”.

No subtítulo O que fica da obra, Sergius Gonzada afirma:

A novidade temática e formal da obra de Rubem Fonseca logo seduziu o leitor brasileiro e mesmo o do exterior. E com razão. Contos como A força humana, Gazela, A coleira do cão, Corações solitários, Onze de março e O buraco na parede são, entre outros, legítimas obras-primas. De seus romances, destacam-se O caso Morel e A grande arte, que estão entre os títulos mais expressivos da ficção brasileira pós 1970. Outros, como Agosto, Vastas emoções e pensamentos imperfeitos e Bufo & Spallanzani, ainda que não sejam obras fundamentais, possibilitam uma leitura agradável. O estilo despojado, por vezes elíptico, os diálogos convincentes, o experimentalismo formal e o realismo com que Rubem Fonseca revela e interpreta a vida urbana brasileira foram logo imitados. É hoje o escritor que mais tem seguidores no país. A maioria destes, contudo, não possui a mesma inspiração, caindo na banalidade jornalística, na fotografia gratuita da violência ou em um vulgar gosto pela morbidez.



REFERÊNCIA:
GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira. Porto Alegre: Editora Leitura XXI, 2004.

  
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29 de ago. de 2013

AUGUSTO DOS ANJOS – Dois poemas



  
-  PEDRO LUSO DE CARVALHO

AUGUSTO DOS ANJOS (Augusto Carvalho Rodrigues dos Anjos) nasceu no Engenho de Pau D’Arco, junto à vila Espírito Santo, Estado da Paraíba, no dia 20 de abril de 1884. Aprendeu as primeiras letras com seu pai, advogado estudioso e dono de uma excelente biblioteca, na qual se encontravam obras de Darwin, Spencer e outros teóricos evolucionistas.

 Cursou o secundário no Liceu Paraibano e Direito em Recife. Essa graduação, no entanto, não lhe serviu como profissão, já que nunca exerceu a advocacia, por não ser essa sua vocação, mas, sim, o magistério. Lecionou literatura no Liceu Pernambucano, e, depois, já no Rio de Janeiro, foi professor de Geografia na Escola Normal e no Colégio Pedro II.

Em 1910, antes de mudar-se para o Rio de Janeiro, casou-se, aos 23 anos, com Ester Fialho, com quem teve dois filhos: Glória (1912) e Guilherme (1913). Daí mudou-se para Leopoldina, no Estado de Minas Gerais, onde foi diretor de um grupo escolar. Faleceu a 12 de novembro de 1914, em Leopoldina – para onde se mudara para tratar da tuberculose – vítima de congestão pulmonar.

O professor Sergius Gonzaga assim se manifesta sobre o poeta, em sua obra Curso de Literatura Brasileira: “Augusto dos Anjos é um caso a parte na poesia brasileira. Autor de grande sucesso popular foi ignorado por certa parcela da crítica, que o julgava mórbido e vulgar. Alguns estudiosos que se debruçaram sobre essa obra única e absolutamente original perderam tempo discutindo se a mesma era parnasiana ou simbolista. O domínio técnico e o gosto pelo soneto comprovariam o primeiro rótulo. A fascinação pela morte, a angústia cósmica e o emprego de ousadas metáforas, indicariam a tendência simbolista”.

Álvaro Lins e Aurélio Buarque de Hollanda escreveram no livro Roteiro Literário de Portugal e do Brasil sobre Augusto dos Anjos: [trecho] “É, sem dúvida, o mais original dos poetas brasileiros; e poucos haverá tão originais quanto ele em língua portuguesa. Apesar do cientificismo que lhe desfeia grande parte da obra, o ritmo personalíssimo do seu verso, a precisão e força da linguagem, o imprevisto das imagens fulgurantes, o patético das emoções – tudo isso é de um grande e raro poeta.”

Ferreira Gullar fala sobre a modernidade dos versos de “Eu”, e afirma que  talvez nenhum outro autor do período merecesse tanto a denominação de pré-modernista como Augusto dos Anjos. Pré-modernista ele o é ‘na mistura de estilos, na linguagem corrosiva, no coloquialismo e na incorporação à literatura de todas às ‘sujeiras’ da vida’.

Segue dois poemas de Augusto dos Anjos, Versos Íntimos e Eterna Mágoa (in Anjos, Augusto. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Ediouro.  Coleção Prestigio, s/d,  p.88-90):




VERSOS ÍNTIMOS



Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro.
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!



*


ETERNA MÁGOA



O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda,

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!

                                                        

                                                          *


REFERÊNCIAS:
GONZAGA, Sergius. Curso de Literatura Brasileira. Porto Alegre: editora Leitura XXI, 2004.
LINS, Álvaro. BUARQUE de Hollanda, Aurélio. Roteiro Literário de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Antologia da Língua Portuguesa, Ed. Civilização Brasileira, 1966.
BOSI, Alfredo. A Literatura Brasileira. O Pré-Modernismo. São Paulo: Editora Cultrix, 1966.



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25 de ago. de 2013

[Conto] DALTON TREVISAN – A pinta preta da paixão



  
-  PEDRO LUSO DE CARVALHO


DALTON TREVISAN passou a adotar o conto, no início dos anos 60, como o fizeram outros escritores brasileiros. Juntamente com Trevisan, destacaram-se, nesse gênero literário: Rubem Fonseca, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles. O sucesso do conto, a partir essa época, deveu-se não apenas aos talentosos escritores, mas, também, por ser formatado em uma narrativa de no máximo 20 a 25 páginas, deixando para trás a histórias mais longas e caudalosas, como disse Italo Moriconi.

Sergius Gonzaga,  professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, menciona no seu livro Curso de Literatura Brasileira, os nomes mais importantes do conto do século XX:  Isaac Babel (russo), Katherine Mansfield (neozelandesa),  Ernest Hemingway (norte-americano), Jorge Luis Borges e Julio Cortázar (argentinos), os brasileiros Dalton Trevisan e Rubem Fonseca.

Segue o conto A pinta preta da paixão, de Dalton Trevisan, conto que integra o livro A trombeta do anjo vingador  (In Trevisan, Dalton. A trombeta do anjo vingador. 3ª ed.  Rio de Janeiro: Record, 1981, p. 64-67):



[ESPAÇO DO CONTO]


A PINTA PRETA DA PAIXÃO
[ DALTON TREVISAN ]


Casou com a moça bonita e pobre, forçada pelos pais. Escrivão, bom partido, vinte anos mais velho. De vingança, nos primeiros meses ela o enganou com o dentista. Não é do marido a filha única. Marca da traição, a vergonhosa pinta de beleza, canto esquerdo do lábio, no dentista como na menina.

Com o escândalo João mudou de cidade. Nunca mais foi visto com a mulher. Balançava as compridas pernas entre o cartório, o clube, a igreja. Na fila indiana dos filhos de Maria, larga fita azul no peito, rezando e cantando de mão posta. Como escrivão, o privilégio de segurar uma vara do pálio na procissão.

Ela, pecadora arrependida, uma vela acesa na mão, protegida do vento na concha branca de papel. Com os anos passou a usar óculo, que a enfeou. O nariz quem sabe maior. E, última prova da paixão, o dentinho de ouro.

Espirrando o pó dos autos, com dois dedos João batia a certidão na velha máquina, sem til nem cedilha, acrescentados em tinta roxa. Toda noite no clube, jogador aflito e sem sorte. Só levantava para ir ao banheiro, deixando o óculo sobre as cartas, ao lado do pratinho com rodelas de salame. Além de espiar-lhe as cartas, os parceiros esfregavam na lente a casca de salame.

De vez em longe examinados os autos pelo juiz, que o intimava a repor o dinheiro dos órfãos. Em desespero, recorria aos dois agiotas da cidade.

A filha Zezé cresceu, muito lindinha, mais parecida com o dentista. Apaixonou-se pelo Josias, que dela se aproveitou. Os pais não queriam o namoro. Ela se encontrava no beco escuro, à noite no cinema, até o campinho de futebol.

Abandonada pelo sedutor, ingeriu quinze comprimidos de aspirina. Não morreu, agora com tossinha nervosa que disfarça a dispepsia crônica. Sem amigas, repudiada pelas mães dos alunos, proibido o salão de baile. Guarda-pó dobrado no braço, transferida para a escola isolada no fundão. Sempre cativa do Josias, saudoso no saxofone da bandinha. Ela quem paga as prestações da fogosa moto vermelha. Só para vê-lo em nuvem de pó com outra na garupa.

Debaixo da porta João achou uma carta anônima. Datilografada, acusando a mulher de adúltera. E a filha bastardinha. Sem comentário, ele a deixou na cristaleira da sala, ao pé do elefante amarelo.

Muitas cartas chegaram, essas, pelo correio. Uma para o padre, narigão purpurino do abuso de vinho. Outras para os dois agiotas, prometendo as brasas vivas do inferno. Todas da velha máquina sem til nem cedilha.

Aposentado, careca, branco olho esbugalhado, João repartia-se entre o vício e a salvação. Sozinho à tarde na igreja, balbuciante, mão no rosto.

Se ele demorava além da meia-noite no clube, a negra enfiava a cabeça na vidraça quebrada:

– Dona Maria chamando.

Só para não deixá-lo ganhar.

Na tarde calmosa a dona comprou fio, agulha, botão. De volta, cambaleante no corredor do vizinho.

– Não me sinto bem.

Amparada até o sofá de palhinha.

– Sente, dona Maria. Que passa.

Suor frio, óculo embaraçado, negra boca torta.

– Um copo d’água.

Correu a vizinha com as gotas de coramina. Sentada quietinha, ouro faiscando no dente, apertava no peito os dois novelos azuis de lã.

No velório, de tão feio o velho parecia triste. O enterro com pequeno acompanhamento, ele ao lado da moça, maior a pinta no canto do lábio. Nem uma vez se abraçaram nem se deram as mãos.

Mesmo dia foi visto arrastando o sapatão pela praça.

– O João fora de casa. Sem guardar nojo. Não é esquisito?

– Alguma precisão.

A hora habitual quem entrava no clube para ocupar a cadeira diante do pratinho com rodela de salame?

– Agora posso jogar sossegado.

Desde essa noite a sorte mudou e, nos cinco anos que viveu, ganhador de mão cheia.

Do outro lado da rua seguem-no os piás boquiabertos e medrosos. Altão, guarda-chuva furado e de varetas quebradas, sacode os longos braços e fala sozinho. Sempre os bolsos inchados de pedras – ao vê-lo os cachorros apostam quem o morde primeiro.




REFERÊNCIA:
GONZAGA, Sergius.  Curso de Literatura Brasileira. Porto Alegre: Editora Leitura XXI, 2004, p. 28.


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